Jussara Lucena, escritora

Textos

Meu melhor amigo

Tenho recebido as cartas de Pedrinho desde que ele ensaiou suas primeiras linhas, tímidas, mas que já delineavam parte do seu comportamento, das ideias e ideais do pequeno futuro Imperador. Ele ansiava por materializar o que fervilhava em sua mente, porém antes dividia tudo comigo. As respostas, eu as soprava em seus ouvidos.

Quando começou a escrevê-las, Pedro era só um menino rodeado por gente grande, alguns deles meros aproveitadores da situação. Sua infância e depois a adolescência foram marcadas pela tristeza e solidão. Isto se acentuou quando foi separado de seu pai, que ele amava muito e sabia que o pai o amava também. Talvez os assuntos da nação não permitissem que eles passassem mais tempo juntos. A mãe não conhecera e a madrasta, Dona Amélia o tratava muito bem, mas ele gostaria de ter experimentado a verdadeira mãe ao seu lado. Não experimentara a sensação de perda, apenas o vazio deixado pela sua ausência.

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“Meu amigo. Espero que compreenda que estas são minhas primeiras palavras escritas em uma carta. Assim, quando fizer a leitura, faça de conta que não percebe os erros de grafia e a simplicidade das palavras. Meus professores insistem que um futuro governante precisa, desde muito cedo, usar as palavras certas, da forma correta. Não me perdoariam pelos erros. Sei que será compreensivo. Precisei escrever, pois ontem à noite ouvi uma conversa de meu pai com aqueles homens de cara-feia, que não saem do seu redor. Um disse para meu pai que vá para Portugal, e que me deixe aqui. Eu não quero isso. O que faria sozinho um menino de cinco anos? Pensei em falar com meu pai, porém não quero que se aborreça comigo. Papai sempre me diz: ‘Meu filho, esta nação precisa de um bom governante. Assim prepararei você para que seja muito melhor do que eu. Preciso de você meu filho, o Brasil também’. Não queria perder Dona Amélia, a possibilidade de carinho de mãe pela segunda vez. Mal dormi, por isso escrevo esta carta ainda na madrugada, na esperança de que você me oriente. Eu preciso deles comigo! Pedro.”

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Pouco tempo depois, seu pai abdicou do trono e partiu para Portugal para nunca mais voltar. A carta do pai ocupou seu pensamento por muito tempo: por que ele dizia adeus e o abençoava afirmando não ter mais esperanças de o ver? O que o pai sabia que ele não?

O vazio em seu peito talvez fosse compensado pelo carinho e dedicação daqueles mais próximos do menino. A preparação para ocupar o trono de imperador lhe tomava boa parte do tempo, raros eram os momentos para brincadeiras, assim como poucos eram seus amigos. Pedro foi se fechando ainda mais em seu mundo particular e as palavras de sua boca se tornavam ainda mais escassas.

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“Querido amigo. Meu pai não voltará, estava escrito naquela carta. Agora, nos corredores do palácio, ouço diversos comentários sobre o meu tutor. Os adultos julgam que as crianças são ignorantes, não entendem o que acontece em seu mundo. Percebo as intrigas, as fofocas. Sei que perderei o meu tutor. Peço a Deus todos os dias, em minhas orações, que Dadama e Rafael continuem comigo. Estou preocupado com outra coisa: tenho molhado a cama quase todas as noites. Não sei por que isto começou. Me seguro para não dormir, mas canso. Quando acordo não tenho o que fazer, passo pelo constrangimento de mostrar as calças e o lençol úmidos e mal cheirosos. Eu gostaria de ser um garoto normal. Pela janela, nos jardins do palácio, vejo crianças brincando. Nem ao menos sei quem são. Tenho vontade de sair correndo, pisar as poças de lama formadas depois da chuva, jogar pedras no lago, rolar com os cachorros na grama. ‘Nada disso cabe a um herdeiro do trono, é perda de tempo’ – dizem meus professores. O solitário Pedro.”

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Ele estava certo. José Bonifácio foi afastado e seu novo tutor o sobrecarregou com ainda mais estudos. O temor que tinha depois da partida do pai se confirmou e, três anos depois, teve a notícia da morte de Pedro I. A tuberculose o levara. Pedro, o garotinho preso aos estudos, vivia para o futuro de uma nação que não o conhecia, que ignorava seus sentimentos e usava o seu nome para defender os seus interesses, melhor dizendo, os interesses daqueles que ocupavam o poder.

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“Meu caro. As lágrimas hoje molham a folha de papel. Se a minha vida solitária era difícil, neste momento é insuportável. Sei que não devia, mas pedi a Deus que me levasse também. Quem sabe um dia Ele me perdoe pelo pensamento. O que eu fiz para me separarem daqueles que amo. Eu não quero este Império! Trocaria todas essas terras, todas essas riquezas, toda essa ‘nobreza’ por alguns anos com meus pais. Sei que é impossível e, Deus não teria por que ser mais piedoso comigo, fazer este milagre. Preciso de um sinal, uma luz que ilumine o meu caminho e me mostre que vale a pena viver? Pedro o Órfão da Nação.”

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Pedro devorava livros. Como os livros instruíam, porém não respondiam a qualquer estímulo eu me firmei como seu confidente e conselheiro. Enquanto isso, no período das Regências, homens revezavam-se no poder e Pedro afastado, mas não alheio aos fatos, continuava seus estudos. Revoltas tomavam conta do país e os governantes se viam em maus lençóis. Meu amigo continuava reprimindo sua infância com as responsabilidades que lhe eram impostas.

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“Amigo. Leio muito, me faz bem. Porém, algumas das personagens das histórias me perseguem. Nos sonhos, algumas delas têm as faces das pessoas que me cercam, que governam. Continuo com medo de fechar os olhos. Elas parecem esconder-se em baixo da cama, atrás das cortinas, dentro dos armários, nas folhas das árvores. Riem de mim. Quando durmo, são os pesadelos que me perseguem. Acordar em pânico é certo e, quando acontece, me vejo sozinho. Meu quarto parece ainda maior e o calor do Rio de Janeiro ainda mais escaldante, sufocando meus pensamentos. Será que isto acontece com os outros garotos também? O assustado Pedro”.

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O tempo foi passando e suas cartas se tornaram mais frequentes, pois essa era a sua melhor forma de expressão. Agora ele já arriscava corresponder-se com outras pessoas. Ele ainda não era dono do seu destino, embora Pedro soubesse muito do que queria para si e para o futuro de sua nação, afinal de contas poucos no Império possuíam o conhecimento que ele já havia adquirido nos seus primeiros quinze anos de vida. Os políticos que manipulavam o país o pressionaram. Sem alternativa, ele acabou por aceitar a decretação de sua “maioridade”, que culminou com a coroação.

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“Amigo. Já passado algum tempo da minha maioridade, hoje é o dia da coroação. Os pensamentos me parecem desorganizados. Estou tão inseguro quanto no dia da partida de meu pai em 1831. Minhas pernas tremem. Minhas palavras são apenas murmúrios. Sei que eles acreditam que continuarão governando, pensam que aceitarei ser manipulado. É esta minha maior preocupação. Imagino um Brasil diferente, com educação para todos, liberdade e justiça social. Quero transformar o Brasil numa terra admirada e respeitado em todo o mundo. Meus conselheiros querem manter seu poder e para isso é melhor um povo ignorante. Não é isso que espero para os meus filhos, não é isso que quero para os meus súditos. Preciso de forças para enfrentar esta nova fase da minha vida. Pedro, o dono da coroa.”

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A convivência com jovens de sua idade era praticamente inexistente. Na cabeça do Imperador adolescente, novos pensamentos surgiram, outros interesses provocados pelas alterações hormonais. Ele não tinha com quem conversar sobre o assunto, mais uma vez seu pai fazia falta. Recorreu a alguns livros proibidos, roubados da estante de seu tutor.

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“Meu caro, na noite passada tive um sonho diferente. Ouvi nos corredores do palácio uma doce voz. Para poder aproveitar um pouco mais o momento e não espantar a dona de tão encantadora e melodiosa fala eu espiei pela fresta da porta do escritório onde eu estudava. Uma jovem, mais velha do que eu, conversava com uma de minhas irmãs. Uma bela morena, de olhos castanho-escuros e pele alva usava gestos suaves e palavras inteligentes para descrever a vida na corte francesa. Chamadas elas saíram rapidamente do corredor e foram até uma sala do palácio. Corri para lá. Ela estava sozinha, pediu que eu me sentasse ao seu lado e olhando firmemente em meus olhos me ensinava como me portar com um bom cavalheiro europeu. Depois me colocou no colo e acariciou meus cabelos. Tudo o que eu queria era tocar o seu rosto. Apesar de parecer apenas uma das personagens do livro que apanhei na biblioteca de meu tutor, acredito que tão atraente criatura existe de fato e não cansarei enquanto não encontra-la. Experimentei naqueles poucos instantes uma mistura de novos sentimentos. Talvez carinho de mãe, quem sabe a vontade de ter alguém do lado pela vida toda. Isto mexeu com o meu corpo. Pedro, apaixonado.”

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Desde então suas cartas para mim ficaram raras. Tempo depois, quando do casamento com aquela que não amava, Pedro fechou-se ainda mais e não recebi mais cartas. Eu sabia que isso aconteceria um dia, poderia ter sido muito antes.

Creio que cumpri o meu papel. Eu continuei a observá-lo, sempre próximo, mesmo que ele não percebesse ou fingisse não perceber a minha presença. O tempo passou muito rápido e Pedro tornou-se um homem velho, porém conservou sua alma de criança e cultivou suas paixões até o último dia de sua vida. Nos últimos de seus dias, já distante do Brasil, voltou a escrever-me.

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“Meu velho e bom amigo, sei que esteve sempre comigo e me culpo por ignorá-lo. Continuo sonhando, da mesma forma que sonhava o menino Pedro. Permaneço apaixonado pela minha terra e por uma doce criatura. Noutra noite, em sonho, recebi permissão para voltar ao Brasil. Não imagina como me senti feliz. Tudo eu daria para rever o mar do Rio de Janeiro, pisar os jardins do Palácio de São Cristóvão. Subindo a serra, até o Palácio de Verão em Petrópolis, voltaria até meu gabinete de estudos e resgataria as cartas que lhe escrevi. Elas devem estar no armário, que fica entre as duas janelas. No armário há um teto falso e um compartimento. A chave para abri-lo está guardada na base do crucifixo pendurado na parede sobre a cama do meu quarto de dormir. Será que algum dia alguém as encontrará? Pedro, saudoso.”

***

Eu parti desse mundo às 0h35min5s do dia 05 de dezembro de 1891, exatos três segundos depois do triste e sofrido coração de meu amigo Pedro parar. Naqueles instantes finais permanecemos em sintonia, num só pensamento, agradecendo pelos momentos que pudemos partilhar: ele escrevendo e eu soprando em seus ouvidos.

Meu nome? Não sei se tenho um. Alguns me chamam de amigo imaginário, outros dizem que sou uma projeção do inconsciente. Eu sou somente um amigo de Pedro, que tentou por muitas e muitas vezes ajuda-lo com a razão, mas ele sempre foi mais coração.

Texto selecionado no Concurso de Contos As Cartas do Pequeno Imperador da Série Glorioso Império do Brasil - Publicado em antologia – jul/2015

Adnelson Campos
12/08/2015

 

 

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